quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dia de Pão


Hoje, voltando da casa da minha avó, passei em frente à antiga padaria do bairro e minha mãe que estava cantando uma música qualquer do rádio, parou o carro no pare obrigatório como obrigatória foi a parada da sua cantoria, como tão quanto de repente o carro andou “A padaria vai fechar, que raiva” de repente foi o choque que se sucedeu. Eu meio que sem entender, coloquei o saco de balinhas coloridas - aquelas de gostos de frutas, bem azedinhas e que segundo meu pai custam os olhos da cara e que pensando bem, às vezes eu sinto que preferiria ser cega, mas ter a boca para sentir os seus sabores coloridos – perguntei por que a minha mãe. De terceira marcha ela embreagenhou um rápido e “não sei” e acabamos por chegar em casa.

Durante o banho eu lembrei dos brigadeiros que tinham lá. Durante a janta eu lembrei dos croassant de geléia de amora que meu pai comprava todo café da manhã “Esses pãozinhos custam o olho da cara, mas são bons demais né?”. Durante a novela eu lembrei dos pães franceses, que graças a Deus não vinham com bigodes fininhos acompanhados de boinas avermelhadas. Durante a noite: Sonhos.

Me lembro vagamente da substituição de coisas a serem vendidas. Uma grande broa de milho, vestida com um avental branco, sovava uma massa diferente enquanto uma Baguete daquelas cumpridas e secas fumava – talvez por isso tão magricelas – na porta da padaria esperando algum cliente para cumprir sua função de caixa. No balcão da frente eu via todos os meninos da escola afundados em caminhas de bolacha cobertas por creme de limão e eu juro pra você que eu achei foi bom; meninos são chatos, tomara que o limão arda seus olhos. Minhas amigas preferidas, espetadas em pauzinhos de madeira, cobertas de chocolate se mostravam sobremesas infantis. No balcão dos fundos estavam Seu Jesus – dono da padaria, sovado, amassado e assado como um pão círio, Dona Maristela – esposa do Seu Jesus, assada e enfeitada como um bolo de casamento; meu pai apertado numa forminha de papel era não o olho da cara, mas um olho-de-sogra e minha mãe uma maria-mole.

Só lembro que eu podia de tudo ali comer, nem lembro mais onde eu deixei meu saquinho de balas coloridas e a boneca que eu segurava, eu só sei que não sabia o que fazer. A minha grande dúvida era se eu me mantinha de boca fechada ou se eu os comia até o último pedacinho. A minha fome era de algo que eu não sei o que é, a minha sede era para um solução. E nesse dia em que tudo era de graça na padaria do bairro, ninguém ia até lá comer. As pessoas sentem fome de não sei o que, mas se sentem sempre fome, porque não iam lá comer nesse dia de promoção? Eu gritava e chamava pelos funcionários e ninguém me ouvia, apenas os doces e bolos dos balcões franziam a testa para minha barulheira.

Aos poucos, quando eu vi de longe minha boneca comendo minhas balinhas, eu achei que as coisas, as pessoas e o mundo estavam complicados demais. Eu tinha a sensação de que ninguém me ouvia – e olha que eu sou uma menina que fala alto, a minha professora sempre reclama disso nas reuniões de pais e mestres (ou pães e padeiros) – mas tinha medo de na vontade doida de comer todas as minhas balinhas, que eram o olho da cara, eu ter ficado cega e não ver mais as pessoas que estavam perto de mim, de não ouvi-las, de não senti-las, tamanho fosse a minha gulodice. Na dúvida, diante a crise coisica, das crises pessoais e das crises mundiais, eu preferi sentar debaixo da árvore de frutinhas amarelas do Sr. Victor e fiquei quieta! Como sempre disse minha avó “em boca fechada não entra mosquito” e assim também eu não corria o risco de comer nenhum daqueles doces estranhos da padaria do Seu Broa. Porque pra mim, não comer é ficar em silêncio e por mais que a tia da escola diga que eu preciso me alimentar muito bem, pois eu estou em fase de desenvolvimento, eu tenho preferido ficar em silêncio a me lambuzar com palavras mal ditas.

Se isso chama covardia, talvez seja só problema meu... Se isso chama fuga, talvez seja só problema meu... e não me olhem com cara de “nossa que menina birrenta e mal criada” eu to quietinha, eu não to comendo nada. E a próxima vez que disserem, “mas gente, como essa menina ta magra”, saibam que eu to me abstendo dos problemas e das crises mundiais, eu sou pequena ainda e tô aprendendo. “Birreeeenta!” Birrento é você que acha que vê aquilo que pensa que sabe o que vê e bate o pé achando que tem a verdade na ponta do dedo e aponta pra mim dizendo “Birreeeenta!”. Eu só tenho preferido o silêncio, porque meu medo é de abocanhar e machucar alguém com as minhas palavras – brancas, enfiodentadas e escovadas todos os dias. E eu sei que eu deixando de comer ou falando e fazendo muito barulho vou acabar machucando alguém. Na dúvida, que haja o silêncio. Fica mais fácil de dormir e mais tranquilo de morrer caso os ferimentos sejam irreversíveis!

No outro dia eu acordei. A padaria tinha fechado as portas mesmo e agora o pão vem fechado num saquinho, em forma.
“Nossa, mas essa marca de pão é o olho da cara, não é mesmo meu bem?!”

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