domingo, 17 de outubro de 2010

Sem título nem fim

Da mesma cor do fim de tarde, ela penteava seus cabelos. Escorria pelos dedos tão novos, ora sujos de terra, ora sujos do dia, ora sujos de infância, alisando seus volumosos cachos sobre os ombros. Era no meio espelho que via o meio fio de seu rosto sereno e o sorriso de leite que amamentava seus olhos toda vez que sentia as cócegas de seu tempo diante os carinhos da manhã. Maria.

Era uma criança como outra qualquer, gostava de saborear as tortas de chocolates que enfeitavam os pós-almoços aos domingos. Ia à escola. Ia à catequese aos sábados de manhã, mas não gostava de acordar cedo aos domingos. Preferia o rosa e margaridas às rosas. Rodeadas de tão poucas primaveras, carregava nos bolsos curtos de seus shorts a delicia dos biscoitos de nata dos outonos e a incerteza natural de seus verões, mas sendo uma menina de tão poucas estações, tinha escondido no fundo do seu bolso esquerdo, em prontidão à mão que o segurava, o frio de um único inverno. Maria.
Gostava de sentar na guia da rua em frente à sua casa e olhar como as coisas se davam. Os cachorros corriam atrás de rodas de carros que corriam atrás, sempre, do fim das ruas. Entendia que os meninos brincavam de um lado diferente do das meninas, mas não sabia por que os homens, aqueles vestidos de sapatos, gostavam tanto de serem a própria roupa das mulheres que os acompanhavam. Sabia da importância dos livros, mas não entendia por que tinham de ser tão longos e dificultosos e era assim que passava as tardes de todos os dias, perguntando por que os quais e poréns se davam de forma tão findada, talvez não com essas palavras, mas o que ela mais saboreava, era fechar os olhos e imaginar um mundo sem perguntas. O que de certa forma a tornava contraditória, mas, talvez, estivesse aí a linha inicial: só nos cansamos de perguntar, porque perguntamos.

Rafaela era a mãe de Maria e esposa de Rafael – motivo mais do que comum para longas e belas histórias de amor, não tinha coisa mais bonita nesse mundo do que ter uma mãe com o mesmo nome do pai; só lhe desgostava nunca ter encontrado um Mario, que é diferente de Mário, diga-se de passagem. Cozinheira de família, Rafaela passava quase todo o tempo na cozinha, inventando receitas doces e salgadas e do alto da cadeira, tão longe do chão, Maria, que não gostava de perguntas, se perguntava dos sabores de sua mãe “como deve ser uma comida que não é doce nem salgada?”. No rápido e ríspido barulho do fim do ovo, olhando como se dava o fim da clara e o resgate da gema e descendo da cadeira, arrumando a alça da blusa que vestia “Eu acho tão estranho separar a clara da gema, o ovo não nasceu assim” caminhou até o portão de casa para ver passar os carros dos dias.

Com a mão dentro do bolso, apertava forte o seu pensamento mais constante e buscava no céu, como se lá existisse alguma resposta, o por que as coisas mudavam. Porque um gato miava e o vento soprava em vez de molhar, de onde vinham as respostas das perguntas e quem as criava. O morango só seria vermelho se morango fosse? E se eu brincasse de bola e os homens se vestissem de homens? “Será que um dia eu vou poder comer biscoito de nata no verão?” – pensou alto, o que franziu a testa do velho que passava.

Como sempre, cansada das suas perguntas, beijou seu inverno, a dúvida final, o recolocou no bolso e atendeu ao chamado de “Maria, tá na hora do seu banho meu amor”. Entrou em casa pensando. Durante o banho sabia que deixaria de tantas perguntas se tivesse a resposta da única flor que não desabrochara em si... Diante o espelho de sua penteadeira “Porque sempre Maria?”. Queria ser e fazer diferente e achava que o mundo mudaria se caso não se chamasse assim – e talvez de fato isso pudesse acontecer. Acariciando seus cabelos fim de tarde, depois do sorriso derramado teve a certeza de que deixaria de tantas perguntas só pra não chamar Maria. Mas era sempre Maria. Maria.

sábado, 2 de outubro de 2010

Coti e Mariana

Coti era o menino mais conhecido da rua das laranjeiras. Todos sabiam de suas travessuras, de suas notas ruins, da sua habilidade em jogar peão, dos seus chinelos sempre postos nas mãos e do pé de primavera que cuidava atrás da igreja. Todos sabiam. E era sempre assim, todo domingo, depois de tirar a batina branca e lavar a jarra de vinho, Coti corria com a molecada, barganhava uma pipoca – que dividia o saco com todos os seus amigos, é lição de santo dividir o pão e a pipoca – e iam jogar pedra nas galinhas e roubar mangas numa vizinha qualquer.
Numa quinta-feira da vida, Coti liderava o batalhão do Coalada – ele tinha aprendido sobre os Coalas na aula de ciências e por achar o nome bonito, nomeou a turma dos moleques com a graça do coitado do bicho e com o doce que mais gostava “coalhada da tia Nena”, a tia achava que não tinha nome melhor pra um bando de doces preguiçosos.

Enquanto ele admirava os meninos todos correndo rua abaixo pra se esconderem contando de um a cem espiando entre os dedos, pensava na ladeira feita de pedra, cheia de casas coloridas, seguidas pelo Ribeirão dos Namorados que corria no fim do vale e no pasto que soerguia logo após o Pulo Molhado (um bordelzinho de quarta categoria à beira do rio onde algumas senhoras iam trançar rendas e agulhas) e pensava “meu reino!”. E era assim que se sentia, Coti, rei de tudo que vivia ali, mesmo que já tivesse morrido.

Foi quando do alto de seu reino, ele engasgou o seu “LÁ VOU EU” com o rápido e singelo som de uma campainha. Era como se os anjos da igreja do Padre Ponce saíssem cantando de suas paredes pintadas jogando pétalas de flor por toda a rua. Vinha Mariana em sua bicicleta de rodinhas, a única menina da rua que tinha uma bicicleta rosa e por tal motivo fazia questão de desfilar todos os dias a tarde pelas ruas altas do bairro. Era filha de D. Sueli, a presidente do clube das virgens Maria. Mariana estava sempre ao balanço do seu vestido branco de flores amarelas e deixava o longo cabelo castanho corrido dançando ao canto e o sabor vento. Quando Mariana passava, Coti sentia como se todas as coisas do mundo estivessem em câmera lenta, como nos filmes que assistia na TV, e a vida perto de Mariana era tão gostosa devagarzinho. Ele não sabia ao certo o porque aquilo acontecia, só sabia que ela era o próprio perfume da flor e sem pestanejar trocava até três boas colheradas de coalhada para ver Mariana e seu carnaval passar.

Certa vez, Coti espiara Mariana repousar num galho de árvore. Era tão bonito ver sua perna cair pela madeira fingindo ser o próprio fruto rosado da mangueira e seu cabelo ser a brisa doce em seu nariz. Coti assustado correu logo dali, com o coração assustado ia passando passo por passo apressado, tremendo, de olho arregalado sem controlar o corpo querendo ser homem.

Diante seu reino e sua rainha, o moleque ajeitou sua bermuda baixa, calçou os chinelos e disse num solavanco “oi mariana você gostaria de passear comigo na beira do rio, tudo bem até mais ver” e tinha sido pescado por um sorriso bem claro. Mariana pegou na mão de Coti (que no momento desejava que seu coração batesse em câmera lenta também, tinha certeza que ia ter um piripaque) ajeitou o cabelo atrás da orelha e disse “vem”. Tudo seria angelical se não fosse a sombra de D. Sueli que se aproximava tão aterrorizada quanto os seus aterrorizantes e esbugalhados olhos de galinha brava.

Mariana puxou a mão de Coti e os dois desceram a ladeira correndo, rindo de tudo o que ficava pra trás, passaram-se os moleques, passaram as meninas, a igreja e a escola e corriam ladeira abaixo como se estivessem prestes a furar a infinita barreira do tempo.

Ao pé do vale, vermelhos e quase que botando os bofes pra fora, deram-se as mãos, acalmaram seus corações acelerados, descansaram ao lado do canteiro de flores do Pulo Molhado e sentiram que seus pés, cansados da ladeira da rua das laranjeiras, eram ora perto, ora longe, trocando inocentes carícias, os pés em que rio havia passado.