sábado, 2 de outubro de 2010

Coti e Mariana

Coti era o menino mais conhecido da rua das laranjeiras. Todos sabiam de suas travessuras, de suas notas ruins, da sua habilidade em jogar peão, dos seus chinelos sempre postos nas mãos e do pé de primavera que cuidava atrás da igreja. Todos sabiam. E era sempre assim, todo domingo, depois de tirar a batina branca e lavar a jarra de vinho, Coti corria com a molecada, barganhava uma pipoca – que dividia o saco com todos os seus amigos, é lição de santo dividir o pão e a pipoca – e iam jogar pedra nas galinhas e roubar mangas numa vizinha qualquer.
Numa quinta-feira da vida, Coti liderava o batalhão do Coalada – ele tinha aprendido sobre os Coalas na aula de ciências e por achar o nome bonito, nomeou a turma dos moleques com a graça do coitado do bicho e com o doce que mais gostava “coalhada da tia Nena”, a tia achava que não tinha nome melhor pra um bando de doces preguiçosos.

Enquanto ele admirava os meninos todos correndo rua abaixo pra se esconderem contando de um a cem espiando entre os dedos, pensava na ladeira feita de pedra, cheia de casas coloridas, seguidas pelo Ribeirão dos Namorados que corria no fim do vale e no pasto que soerguia logo após o Pulo Molhado (um bordelzinho de quarta categoria à beira do rio onde algumas senhoras iam trançar rendas e agulhas) e pensava “meu reino!”. E era assim que se sentia, Coti, rei de tudo que vivia ali, mesmo que já tivesse morrido.

Foi quando do alto de seu reino, ele engasgou o seu “LÁ VOU EU” com o rápido e singelo som de uma campainha. Era como se os anjos da igreja do Padre Ponce saíssem cantando de suas paredes pintadas jogando pétalas de flor por toda a rua. Vinha Mariana em sua bicicleta de rodinhas, a única menina da rua que tinha uma bicicleta rosa e por tal motivo fazia questão de desfilar todos os dias a tarde pelas ruas altas do bairro. Era filha de D. Sueli, a presidente do clube das virgens Maria. Mariana estava sempre ao balanço do seu vestido branco de flores amarelas e deixava o longo cabelo castanho corrido dançando ao canto e o sabor vento. Quando Mariana passava, Coti sentia como se todas as coisas do mundo estivessem em câmera lenta, como nos filmes que assistia na TV, e a vida perto de Mariana era tão gostosa devagarzinho. Ele não sabia ao certo o porque aquilo acontecia, só sabia que ela era o próprio perfume da flor e sem pestanejar trocava até três boas colheradas de coalhada para ver Mariana e seu carnaval passar.

Certa vez, Coti espiara Mariana repousar num galho de árvore. Era tão bonito ver sua perna cair pela madeira fingindo ser o próprio fruto rosado da mangueira e seu cabelo ser a brisa doce em seu nariz. Coti assustado correu logo dali, com o coração assustado ia passando passo por passo apressado, tremendo, de olho arregalado sem controlar o corpo querendo ser homem.

Diante seu reino e sua rainha, o moleque ajeitou sua bermuda baixa, calçou os chinelos e disse num solavanco “oi mariana você gostaria de passear comigo na beira do rio, tudo bem até mais ver” e tinha sido pescado por um sorriso bem claro. Mariana pegou na mão de Coti (que no momento desejava que seu coração batesse em câmera lenta também, tinha certeza que ia ter um piripaque) ajeitou o cabelo atrás da orelha e disse “vem”. Tudo seria angelical se não fosse a sombra de D. Sueli que se aproximava tão aterrorizada quanto os seus aterrorizantes e esbugalhados olhos de galinha brava.

Mariana puxou a mão de Coti e os dois desceram a ladeira correndo, rindo de tudo o que ficava pra trás, passaram-se os moleques, passaram as meninas, a igreja e a escola e corriam ladeira abaixo como se estivessem prestes a furar a infinita barreira do tempo.

Ao pé do vale, vermelhos e quase que botando os bofes pra fora, deram-se as mãos, acalmaram seus corações acelerados, descansaram ao lado do canteiro de flores do Pulo Molhado e sentiram que seus pés, cansados da ladeira da rua das laranjeiras, eram ora perto, ora longe, trocando inocentes carícias, os pés em que rio havia passado.

Um comentário:

  1. A coisa mais bonita que você já escreveu. Que pena, não vai escrever nada mais bonito.
    Que nada é a porta agora escancarada para novos melhores. =)

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