- Pode falar agora?
“E, entre os dois, a ideia de um sinal, traçado em luz...”
Ah eu não tenho muito do que reclamar, sabe? Não muito, por que um pouquinho a gente sempre tem né, a reclamância dá gosto pra coisa! Quarenta e cinco anos de casa, com casa e bem casada com o mesmo amor da minha vida e digo mais, nunca precisei se quer espichar o olho pra qualquer outro rapazote que me desse chance. E foi sempre assim, eu e ele, a viola dele e a minha gatinha, as flores dele e as minhas receitas, tudo assim, abençoado e saboreado por Deus, que nos proteja sempre, amém!
“A tarde dói... de tanto igual.”
A gente se conheceu era tudo mocinho, sabe? Meu sonho era encontrar um amor como aqueles que a gente se lia em livro, bonito, que parece bordado em renda holandesa de tanta flor que o romance enfeita, mas num acontece né menino, cê sabe como é né? A poesia é os traço delicado de tinta que pinta a cor dos olhos, e na maioria das vezes a gente leva uma vida cega. A gente se olhou, eu virei pro balcão e fiquei esperando minha bebida, quando eu olhei ele não tava mais lá onde eu tinha visto, não. Mas, pra minha surpresa, ele tava sentado bem do meu outro lado, parado com uma cara de assustado que dava medo... Eu? Ah eu devia tá com a cara mais assustada que a dele, foi a primeira vez que eu senti a leveza de um bordado holandês. Foi a primeira vez que eu senti borboletas na barriga. Ele perguntou meu nome e eu disse! Eu perguntei o dele e ele respondeu: Planura! O bicho tava tão nervoso que mal conseguia falar direito, falou onde morava no lugar da graça que tinha, o que teve sua graça; Eu que já tinha me encantado por aqueles olhos escuros e assustados, chamei o garçom e pedi algo que pudesse deixar ele mais tranquilo e aí depois disso o depois se tornou agora e a coisa toda aconteceu acontecendo por quarenta e cinco anos bem casados e repousados nas mãos de Deus, que nos proteja sempre, amém!
“Que luz que faz...”
Lembro que quando ele foi conhecer meu pai, ele chegou vestidinho com um terno que eu nunca tinha visto. Mais velho que os pano que a minha mãe usava pra limpar a casa, mas tava formoso, com o cabelo penteado de lado e uma sacola na mão, trouxe trufas pra sobremesa da janta... O meu pai? O meu pai já foi logo de bica soltando um “chocolate pra adoçar o que, rapaz?”, mas tudo se deu bonito, ele teve a sorte do meu pai ser professor de biologia da escola de ensino médio da cidade e gostar tanto de flor quanto o próprio que era dono de uma floricultura lá na cidade dele. Ele me chama de “minha flor” até hoje. Inclusive nosso casamento foi o “casamento mais florido que a cidade já viu”, saiu no jornal. ... Pra que falar de problema se a vida foi muito mais bela do que feia? Menino, entende uma coisa, tamarindo é azedo, mas é você que escolhe chupar ele ou não, entendeu?
“Mas, a voz diz...”
A Alice é minha gatinha desde tempo de moça, ganhei do meu primeiro namorado, ele não faz ideia disso ... Vixe é mesmo, vai fica sabendo agora! Ah, fica tranquilo, nosso nó tá mais do que bem dado já! Ele tem muito medo de borboleta, sabe? O que de certa forma chega ser engraçado, porque um homem que mexe com flor não podia ter medo das suas damas, pois tem. Pelo contrário, Alice adora uma borboleta. Tava pensando, borboleta é um bicho que tá sempre na nossa história. Ele morre de medo, a gata gosta de brincar e eu, eu sinto elas na barriga que nem da primeira vez, todo dia, quando o portão abre as 18h da tarde. Não sei dizer por que e prefiro nem saber por que, tá tão bom do jeito que tá, elas se avoam todas dentro de mim, deve ser daí a leveza do meu amor.
... Ah, o resto de tempo que Deus, que nos proteja sempre, amém, puder dar vida pra nós dois. Eu tive um filho só, um filho bem tido, daqueles de encher de orgulho o peito da gente, cheio de problema que nem o pai dele, que nem eu, mas quem não tem problema? Só sei que dos problemas que ele me deu, os mais gostosos passavam o domingo correndo, outro sempre arrebentava as corda do violão do avô dele e a outra gostou sempre muito de jogar bola... Três netos, uma molecada linda de dar gosto, dois menino e uma menina. Do resto, não tenho do que reclamar muito não. Até porque eu to véia, e a minha pouca reclamância é charme da minha idade E só peço aos céus a força final, o ultimo tranco pra dar conta de sentir que eu passei por essa terra e que to indo embora dela com as unha suja, do resto, eu vou ser feliz.
“Motriz...
Matriz....
Motriz...”
- Corta!
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
sábado, 27 de novembro de 2010
Amor de pai e filho
Da lasca da madeira, ouvia o insistente compassar de dentro da casa.
Os cômodos vazios suspiravam um ambiente que tinha na lembrança recente dos tintilares de garfos e facas e elogios saborosos em relação à comida, que ainda se mantinha na mesa e em perfume no ar, o ultimo estrondo da porta. Ao longe se ouvia um gemido baixo, um choro fraco que molhava os lençóis azuis do ultimo quarto do corredor. Paulo.
O rodapé era sempre enfeitado com uma bola de capotão encardida, pelo tempo, que ganhara no seu primeiro aniversário. Gostava de se deitar no chão frio do quarto, sobre o tapete branco que combinava com a única parede azul, excluída pelas outras três brancas que se erguiam imponentes em número maior. O rádio preto sobre a cômoda branca “deve ser o contraste do que eu ouço com o que eu visto” – pensou certa vez quando com os pés em cima da cama olhava para o teto decorado com estrelas e planetas fluorescentes. Um estudante completo, um artista perfeito, um neto exemplar, um filho escondido. Paulo.
“Para Evandro, você não tem noção do que você está falando, o menino chegou tarde em casa como chega todo final de semana. Evandro olha pra mim, eu to falando com você. Eu não te entendo mesmo, você pagou dois anos de terapia pra ele deixar de ser tímido, pra que ele fosse um garoto normal como qualquer um da idade dele e agora tá fazendo isso. Evandro, onde você vai? Evandro? Evandro vem aqui...”
Sempre havia freqüentado os melhores colégios da cidade, sempre havia vestido as melhores roupas do shopping, sempre havia sido o melhor amigo da sua mãe. Gostava de futebol, mas não apreciava, era fanático pelo seu time do coração, ou do coração do seu pai, só jogava na escola. É aquele garoto típico de rodinhas, está sempre cercado de meninas, do tipo engraçado, meio desengonçado, quase que bem formado – um adolescente como outro qualquer.
Trancado no quarto externo da casa, onde empilhava caixas de ferramentas e coisas que não usava mais, o pai, Evandro, filho de Mãe largada, irmão primogênito e mecânico da mais influente oficina de tratores da região, olhava pro chão procurando entender suas últimas palavras, talvez encontrasse entre as pedras caídas entre as caixas empilhadas a dureza das últimas palavras tremidas que havia expelido.
“Você acha que eu sou um monstro, um monstro desse tipo que se vê em filme na TV. Mas você nunca vai me entender, você nunca vai entender o que sinto... Minha vida nunca foi sessão da tarde Mulher, eu trabalhei deus de cedo e nunca tive tempo pra ficar de papo na rua. Mas aí o que acontece? Você casa, tem filho e quer dar tudo aquilo que não teve e ai numa mesa dum domingo de Deus, na hora do almoço você me fala uma desgraça dessas como se estivesse falando de algo normal? Toma vergonha nessa tua cara seu...”
As mãos rápidas recolhiam o resto de arroz ao pé da cadeira, enquanto da boca saltava qualquer oração baixa, dessas de coração de mãe, pedindo ajuda para saber usar da força que lhe são natural. Ela era a terceira filha de três. Filha de velhos aposentados. Dona de casa e fã de programas de culinária; vivia de sonhos e outros doces de festa.
“Paulo abre a porta meu filho? Tenta entender seu pai, é outra criação, você sabe que ele te ama e não falou aquelas coisas por mal! Eu sei. Eu só queria te dizer que ele te ama filho... Não fala isso Paulo, você também não sabe o que tá dizendo, é um descontrolado que nem o seu pai como se fosse adiantar numa hora dessas os dois ficarem trancados dentro do quarto como duas crianças pequenas e eu tenho que ficar aqui no meio como se eu não tivesse desesperada com essa coisa toda meu deus eu não sei eu não sei meu deus”
Do último quarto do corredor ouvia-se escorrer e pingar nos dedos inquietos dos pés sobre o tapete branco, um risco fino de desespero, aquele choro de quem não pode ouvir mais sua música favorita em seu rádio preto. Da ultima porta do corredor se ouvia escorrer e pingar sobre o avental, delicadamente bordado de azul e rosa “domingo”, um risco preto de maquiagem de terceira que dividia o peito num choro de mãe, num choro de medo. No fundo do quarto externo, ao lado de uma caixa aberta, ouvia-se escorrer e pingar sobre os dedos estendidos da mão, um risco branco de um gozo proibido das páginas de todos os homens que moravam empilhados naquele canto.
Os cômodos vazios suspiravam um ambiente que tinha na lembrança recente dos tintilares de garfos e facas e elogios saborosos em relação à comida, que ainda se mantinha na mesa e em perfume no ar, o ultimo estrondo da porta. Ao longe se ouvia um gemido baixo, um choro fraco que molhava os lençóis azuis do ultimo quarto do corredor. Paulo.
O rodapé era sempre enfeitado com uma bola de capotão encardida, pelo tempo, que ganhara no seu primeiro aniversário. Gostava de se deitar no chão frio do quarto, sobre o tapete branco que combinava com a única parede azul, excluída pelas outras três brancas que se erguiam imponentes em número maior. O rádio preto sobre a cômoda branca “deve ser o contraste do que eu ouço com o que eu visto” – pensou certa vez quando com os pés em cima da cama olhava para o teto decorado com estrelas e planetas fluorescentes. Um estudante completo, um artista perfeito, um neto exemplar, um filho escondido. Paulo.
“Para Evandro, você não tem noção do que você está falando, o menino chegou tarde em casa como chega todo final de semana. Evandro olha pra mim, eu to falando com você. Eu não te entendo mesmo, você pagou dois anos de terapia pra ele deixar de ser tímido, pra que ele fosse um garoto normal como qualquer um da idade dele e agora tá fazendo isso. Evandro, onde você vai? Evandro? Evandro vem aqui...”
Sempre havia freqüentado os melhores colégios da cidade, sempre havia vestido as melhores roupas do shopping, sempre havia sido o melhor amigo da sua mãe. Gostava de futebol, mas não apreciava, era fanático pelo seu time do coração, ou do coração do seu pai, só jogava na escola. É aquele garoto típico de rodinhas, está sempre cercado de meninas, do tipo engraçado, meio desengonçado, quase que bem formado – um adolescente como outro qualquer.
Trancado no quarto externo da casa, onde empilhava caixas de ferramentas e coisas que não usava mais, o pai, Evandro, filho de Mãe largada, irmão primogênito e mecânico da mais influente oficina de tratores da região, olhava pro chão procurando entender suas últimas palavras, talvez encontrasse entre as pedras caídas entre as caixas empilhadas a dureza das últimas palavras tremidas que havia expelido.
“Você acha que eu sou um monstro, um monstro desse tipo que se vê em filme na TV. Mas você nunca vai me entender, você nunca vai entender o que sinto... Minha vida nunca foi sessão da tarde Mulher, eu trabalhei deus de cedo e nunca tive tempo pra ficar de papo na rua. Mas aí o que acontece? Você casa, tem filho e quer dar tudo aquilo que não teve e ai numa mesa dum domingo de Deus, na hora do almoço você me fala uma desgraça dessas como se estivesse falando de algo normal? Toma vergonha nessa tua cara seu...”
As mãos rápidas recolhiam o resto de arroz ao pé da cadeira, enquanto da boca saltava qualquer oração baixa, dessas de coração de mãe, pedindo ajuda para saber usar da força que lhe são natural. Ela era a terceira filha de três. Filha de velhos aposentados. Dona de casa e fã de programas de culinária; vivia de sonhos e outros doces de festa.
“Paulo abre a porta meu filho? Tenta entender seu pai, é outra criação, você sabe que ele te ama e não falou aquelas coisas por mal! Eu sei. Eu só queria te dizer que ele te ama filho... Não fala isso Paulo, você também não sabe o que tá dizendo, é um descontrolado que nem o seu pai como se fosse adiantar numa hora dessas os dois ficarem trancados dentro do quarto como duas crianças pequenas e eu tenho que ficar aqui no meio como se eu não tivesse desesperada com essa coisa toda meu deus eu não sei eu não sei meu deus”
Do último quarto do corredor ouvia-se escorrer e pingar nos dedos inquietos dos pés sobre o tapete branco, um risco fino de desespero, aquele choro de quem não pode ouvir mais sua música favorita em seu rádio preto. Da ultima porta do corredor se ouvia escorrer e pingar sobre o avental, delicadamente bordado de azul e rosa “domingo”, um risco preto de maquiagem de terceira que dividia o peito num choro de mãe, num choro de medo. No fundo do quarto externo, ao lado de uma caixa aberta, ouvia-se escorrer e pingar sobre os dedos estendidos da mão, um risco branco de um gozo proibido das páginas de todos os homens que moravam empilhados naquele canto.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Eu escrevi um poema triste (Quintana)
Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Histórias de gente branca
E tudo parecia intencionar uma tranqüilidade que não se expressava nas mãos suadas, já amassadas que amassavam o lenço fino. O dom do trabalho pendurado nas paredes brancas se mostrava em rápidos textos e curtas assinaturas; a mesa limpa; o chão branco que insistia em transformar o forte cheiro do dentista em uma paz que não existia ali. Ela tremia dos pés a cabeça. Não se sabia se temerosa aos finos e afiados penduricalhos da bancada de procedimento ou se a sensação de que a dor que sentia até então fosse lhe custar uma úlcera ácida no fundo do bolso. Ela tremia.
Ao se aproximar o valente cavalheiro, vestido de branco e escondido por de trás de uma misteriosa máscara clara, vestiu suas luvas como se preparasse para uma batalha. Ela tremia. “Dr. Quanto custa pra distrair o dente?” Sabido da sua missão de distrair aquele que à mulher causava dor, o homem de branco entendeu que às vezes pra distrair a dor é preciso um bocado de sangue.
Ao se aproximar o valente cavalheiro, vestido de branco e escondido por de trás de uma misteriosa máscara clara, vestiu suas luvas como se preparasse para uma batalha. Ela tremia. “Dr. Quanto custa pra distrair o dente?” Sabido da sua missão de distrair aquele que à mulher causava dor, o homem de branco entendeu que às vezes pra distrair a dor é preciso um bocado de sangue.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Na tua reza
De baixo de uma incomum chuva
Velhos arbustos plantados
Ao lado de novas flores
Silenciavam as orações
E no silêncio de uma tarde
De sexta-feira
O único som era dela
- Você saiu de mim, eu te dei o ar
saiam todos, saiam todos
Trovejava o céu escuro
- serei eu a única a te deixar ir
volte pra dentro meu pequeno, volte
E com as unhas sujas de terra
Cravadas as raízes
Uma mulher se reconstruiu
Velhos arbustos plantados
Ao lado de novas flores
Silenciavam as orações
E no silêncio de uma tarde
De sexta-feira
O único som era dela
- Você saiu de mim, eu te dei o ar
saiam todos, saiam todos
Trovejava o céu escuro
- serei eu a única a te deixar ir
volte pra dentro meu pequeno, volte
E com as unhas sujas de terra
Cravadas as raízes
Uma mulher se reconstruiu
domingo, 17 de outubro de 2010
Sem título nem fim
Da mesma cor do fim de tarde, ela penteava seus cabelos. Escorria pelos dedos tão novos, ora sujos de terra, ora sujos do dia, ora sujos de infância, alisando seus volumosos cachos sobre os ombros. Era no meio espelho que via o meio fio de seu rosto sereno e o sorriso de leite que amamentava seus olhos toda vez que sentia as cócegas de seu tempo diante os carinhos da manhã. Maria.
Era uma criança como outra qualquer, gostava de saborear as tortas de chocolates que enfeitavam os pós-almoços aos domingos. Ia à escola. Ia à catequese aos sábados de manhã, mas não gostava de acordar cedo aos domingos. Preferia o rosa e margaridas às rosas. Rodeadas de tão poucas primaveras, carregava nos bolsos curtos de seus shorts a delicia dos biscoitos de nata dos outonos e a incerteza natural de seus verões, mas sendo uma menina de tão poucas estações, tinha escondido no fundo do seu bolso esquerdo, em prontidão à mão que o segurava, o frio de um único inverno. Maria.
Gostava de sentar na guia da rua em frente à sua casa e olhar como as coisas se davam. Os cachorros corriam atrás de rodas de carros que corriam atrás, sempre, do fim das ruas. Entendia que os meninos brincavam de um lado diferente do das meninas, mas não sabia por que os homens, aqueles vestidos de sapatos, gostavam tanto de serem a própria roupa das mulheres que os acompanhavam. Sabia da importância dos livros, mas não entendia por que tinham de ser tão longos e dificultosos e era assim que passava as tardes de todos os dias, perguntando por que os quais e poréns se davam de forma tão findada, talvez não com essas palavras, mas o que ela mais saboreava, era fechar os olhos e imaginar um mundo sem perguntas. O que de certa forma a tornava contraditória, mas, talvez, estivesse aí a linha inicial: só nos cansamos de perguntar, porque perguntamos.
Rafaela era a mãe de Maria e esposa de Rafael – motivo mais do que comum para longas e belas histórias de amor, não tinha coisa mais bonita nesse mundo do que ter uma mãe com o mesmo nome do pai; só lhe desgostava nunca ter encontrado um Mario, que é diferente de Mário, diga-se de passagem. Cozinheira de família, Rafaela passava quase todo o tempo na cozinha, inventando receitas doces e salgadas e do alto da cadeira, tão longe do chão, Maria, que não gostava de perguntas, se perguntava dos sabores de sua mãe “como deve ser uma comida que não é doce nem salgada?”. No rápido e ríspido barulho do fim do ovo, olhando como se dava o fim da clara e o resgate da gema e descendo da cadeira, arrumando a alça da blusa que vestia “Eu acho tão estranho separar a clara da gema, o ovo não nasceu assim” caminhou até o portão de casa para ver passar os carros dos dias.
Com a mão dentro do bolso, apertava forte o seu pensamento mais constante e buscava no céu, como se lá existisse alguma resposta, o por que as coisas mudavam. Porque um gato miava e o vento soprava em vez de molhar, de onde vinham as respostas das perguntas e quem as criava. O morango só seria vermelho se morango fosse? E se eu brincasse de bola e os homens se vestissem de homens? “Será que um dia eu vou poder comer biscoito de nata no verão?” – pensou alto, o que franziu a testa do velho que passava.
Como sempre, cansada das suas perguntas, beijou seu inverno, a dúvida final, o recolocou no bolso e atendeu ao chamado de “Maria, tá na hora do seu banho meu amor”. Entrou em casa pensando. Durante o banho sabia que deixaria de tantas perguntas se tivesse a resposta da única flor que não desabrochara em si... Diante o espelho de sua penteadeira “Porque sempre Maria?”. Queria ser e fazer diferente e achava que o mundo mudaria se caso não se chamasse assim – e talvez de fato isso pudesse acontecer. Acariciando seus cabelos fim de tarde, depois do sorriso derramado teve a certeza de que deixaria de tantas perguntas só pra não chamar Maria. Mas era sempre Maria. Maria.
Era uma criança como outra qualquer, gostava de saborear as tortas de chocolates que enfeitavam os pós-almoços aos domingos. Ia à escola. Ia à catequese aos sábados de manhã, mas não gostava de acordar cedo aos domingos. Preferia o rosa e margaridas às rosas. Rodeadas de tão poucas primaveras, carregava nos bolsos curtos de seus shorts a delicia dos biscoitos de nata dos outonos e a incerteza natural de seus verões, mas sendo uma menina de tão poucas estações, tinha escondido no fundo do seu bolso esquerdo, em prontidão à mão que o segurava, o frio de um único inverno. Maria.
Gostava de sentar na guia da rua em frente à sua casa e olhar como as coisas se davam. Os cachorros corriam atrás de rodas de carros que corriam atrás, sempre, do fim das ruas. Entendia que os meninos brincavam de um lado diferente do das meninas, mas não sabia por que os homens, aqueles vestidos de sapatos, gostavam tanto de serem a própria roupa das mulheres que os acompanhavam. Sabia da importância dos livros, mas não entendia por que tinham de ser tão longos e dificultosos e era assim que passava as tardes de todos os dias, perguntando por que os quais e poréns se davam de forma tão findada, talvez não com essas palavras, mas o que ela mais saboreava, era fechar os olhos e imaginar um mundo sem perguntas. O que de certa forma a tornava contraditória, mas, talvez, estivesse aí a linha inicial: só nos cansamos de perguntar, porque perguntamos.
Rafaela era a mãe de Maria e esposa de Rafael – motivo mais do que comum para longas e belas histórias de amor, não tinha coisa mais bonita nesse mundo do que ter uma mãe com o mesmo nome do pai; só lhe desgostava nunca ter encontrado um Mario, que é diferente de Mário, diga-se de passagem. Cozinheira de família, Rafaela passava quase todo o tempo na cozinha, inventando receitas doces e salgadas e do alto da cadeira, tão longe do chão, Maria, que não gostava de perguntas, se perguntava dos sabores de sua mãe “como deve ser uma comida que não é doce nem salgada?”. No rápido e ríspido barulho do fim do ovo, olhando como se dava o fim da clara e o resgate da gema e descendo da cadeira, arrumando a alça da blusa que vestia “Eu acho tão estranho separar a clara da gema, o ovo não nasceu assim” caminhou até o portão de casa para ver passar os carros dos dias.
Com a mão dentro do bolso, apertava forte o seu pensamento mais constante e buscava no céu, como se lá existisse alguma resposta, o por que as coisas mudavam. Porque um gato miava e o vento soprava em vez de molhar, de onde vinham as respostas das perguntas e quem as criava. O morango só seria vermelho se morango fosse? E se eu brincasse de bola e os homens se vestissem de homens? “Será que um dia eu vou poder comer biscoito de nata no verão?” – pensou alto, o que franziu a testa do velho que passava.
Como sempre, cansada das suas perguntas, beijou seu inverno, a dúvida final, o recolocou no bolso e atendeu ao chamado de “Maria, tá na hora do seu banho meu amor”. Entrou em casa pensando. Durante o banho sabia que deixaria de tantas perguntas se tivesse a resposta da única flor que não desabrochara em si... Diante o espelho de sua penteadeira “Porque sempre Maria?”. Queria ser e fazer diferente e achava que o mundo mudaria se caso não se chamasse assim – e talvez de fato isso pudesse acontecer. Acariciando seus cabelos fim de tarde, depois do sorriso derramado teve a certeza de que deixaria de tantas perguntas só pra não chamar Maria. Mas era sempre Maria. Maria.
sábado, 2 de outubro de 2010
Coti e Mariana
Coti era o menino mais conhecido da rua das laranjeiras. Todos sabiam de suas travessuras, de suas notas ruins, da sua habilidade em jogar peão, dos seus chinelos sempre postos nas mãos e do pé de primavera que cuidava atrás da igreja. Todos sabiam. E era sempre assim, todo domingo, depois de tirar a batina branca e lavar a jarra de vinho, Coti corria com a molecada, barganhava uma pipoca – que dividia o saco com todos os seus amigos, é lição de santo dividir o pão e a pipoca – e iam jogar pedra nas galinhas e roubar mangas numa vizinha qualquer.
Numa quinta-feira da vida, Coti liderava o batalhão do Coalada – ele tinha aprendido sobre os Coalas na aula de ciências e por achar o nome bonito, nomeou a turma dos moleques com a graça do coitado do bicho e com o doce que mais gostava “coalhada da tia Nena”, a tia achava que não tinha nome melhor pra um bando de doces preguiçosos.
Enquanto ele admirava os meninos todos correndo rua abaixo pra se esconderem contando de um a cem espiando entre os dedos, pensava na ladeira feita de pedra, cheia de casas coloridas, seguidas pelo Ribeirão dos Namorados que corria no fim do vale e no pasto que soerguia logo após o Pulo Molhado (um bordelzinho de quarta categoria à beira do rio onde algumas senhoras iam trançar rendas e agulhas) e pensava “meu reino!”. E era assim que se sentia, Coti, rei de tudo que vivia ali, mesmo que já tivesse morrido.
Foi quando do alto de seu reino, ele engasgou o seu “LÁ VOU EU” com o rápido e singelo som de uma campainha. Era como se os anjos da igreja do Padre Ponce saíssem cantando de suas paredes pintadas jogando pétalas de flor por toda a rua. Vinha Mariana em sua bicicleta de rodinhas, a única menina da rua que tinha uma bicicleta rosa e por tal motivo fazia questão de desfilar todos os dias a tarde pelas ruas altas do bairro. Era filha de D. Sueli, a presidente do clube das virgens Maria. Mariana estava sempre ao balanço do seu vestido branco de flores amarelas e deixava o longo cabelo castanho corrido dançando ao canto e o sabor vento. Quando Mariana passava, Coti sentia como se todas as coisas do mundo estivessem em câmera lenta, como nos filmes que assistia na TV, e a vida perto de Mariana era tão gostosa devagarzinho. Ele não sabia ao certo o porque aquilo acontecia, só sabia que ela era o próprio perfume da flor e sem pestanejar trocava até três boas colheradas de coalhada para ver Mariana e seu carnaval passar.
Certa vez, Coti espiara Mariana repousar num galho de árvore. Era tão bonito ver sua perna cair pela madeira fingindo ser o próprio fruto rosado da mangueira e seu cabelo ser a brisa doce em seu nariz. Coti assustado correu logo dali, com o coração assustado ia passando passo por passo apressado, tremendo, de olho arregalado sem controlar o corpo querendo ser homem.
Diante seu reino e sua rainha, o moleque ajeitou sua bermuda baixa, calçou os chinelos e disse num solavanco “oi mariana você gostaria de passear comigo na beira do rio, tudo bem até mais ver” e tinha sido pescado por um sorriso bem claro. Mariana pegou na mão de Coti (que no momento desejava que seu coração batesse em câmera lenta também, tinha certeza que ia ter um piripaque) ajeitou o cabelo atrás da orelha e disse “vem”. Tudo seria angelical se não fosse a sombra de D. Sueli que se aproximava tão aterrorizada quanto os seus aterrorizantes e esbugalhados olhos de galinha brava.
Mariana puxou a mão de Coti e os dois desceram a ladeira correndo, rindo de tudo o que ficava pra trás, passaram-se os moleques, passaram as meninas, a igreja e a escola e corriam ladeira abaixo como se estivessem prestes a furar a infinita barreira do tempo.
Ao pé do vale, vermelhos e quase que botando os bofes pra fora, deram-se as mãos, acalmaram seus corações acelerados, descansaram ao lado do canteiro de flores do Pulo Molhado e sentiram que seus pés, cansados da ladeira da rua das laranjeiras, eram ora perto, ora longe, trocando inocentes carícias, os pés em que rio havia passado.
Numa quinta-feira da vida, Coti liderava o batalhão do Coalada – ele tinha aprendido sobre os Coalas na aula de ciências e por achar o nome bonito, nomeou a turma dos moleques com a graça do coitado do bicho e com o doce que mais gostava “coalhada da tia Nena”, a tia achava que não tinha nome melhor pra um bando de doces preguiçosos.
Enquanto ele admirava os meninos todos correndo rua abaixo pra se esconderem contando de um a cem espiando entre os dedos, pensava na ladeira feita de pedra, cheia de casas coloridas, seguidas pelo Ribeirão dos Namorados que corria no fim do vale e no pasto que soerguia logo após o Pulo Molhado (um bordelzinho de quarta categoria à beira do rio onde algumas senhoras iam trançar rendas e agulhas) e pensava “meu reino!”. E era assim que se sentia, Coti, rei de tudo que vivia ali, mesmo que já tivesse morrido.
Foi quando do alto de seu reino, ele engasgou o seu “LÁ VOU EU” com o rápido e singelo som de uma campainha. Era como se os anjos da igreja do Padre Ponce saíssem cantando de suas paredes pintadas jogando pétalas de flor por toda a rua. Vinha Mariana em sua bicicleta de rodinhas, a única menina da rua que tinha uma bicicleta rosa e por tal motivo fazia questão de desfilar todos os dias a tarde pelas ruas altas do bairro. Era filha de D. Sueli, a presidente do clube das virgens Maria. Mariana estava sempre ao balanço do seu vestido branco de flores amarelas e deixava o longo cabelo castanho corrido dançando ao canto e o sabor vento. Quando Mariana passava, Coti sentia como se todas as coisas do mundo estivessem em câmera lenta, como nos filmes que assistia na TV, e a vida perto de Mariana era tão gostosa devagarzinho. Ele não sabia ao certo o porque aquilo acontecia, só sabia que ela era o próprio perfume da flor e sem pestanejar trocava até três boas colheradas de coalhada para ver Mariana e seu carnaval passar.
Certa vez, Coti espiara Mariana repousar num galho de árvore. Era tão bonito ver sua perna cair pela madeira fingindo ser o próprio fruto rosado da mangueira e seu cabelo ser a brisa doce em seu nariz. Coti assustado correu logo dali, com o coração assustado ia passando passo por passo apressado, tremendo, de olho arregalado sem controlar o corpo querendo ser homem.
Diante seu reino e sua rainha, o moleque ajeitou sua bermuda baixa, calçou os chinelos e disse num solavanco “oi mariana você gostaria de passear comigo na beira do rio, tudo bem até mais ver” e tinha sido pescado por um sorriso bem claro. Mariana pegou na mão de Coti (que no momento desejava que seu coração batesse em câmera lenta também, tinha certeza que ia ter um piripaque) ajeitou o cabelo atrás da orelha e disse “vem”. Tudo seria angelical se não fosse a sombra de D. Sueli que se aproximava tão aterrorizada quanto os seus aterrorizantes e esbugalhados olhos de galinha brava.
Mariana puxou a mão de Coti e os dois desceram a ladeira correndo, rindo de tudo o que ficava pra trás, passaram-se os moleques, passaram as meninas, a igreja e a escola e corriam ladeira abaixo como se estivessem prestes a furar a infinita barreira do tempo.
Ao pé do vale, vermelhos e quase que botando os bofes pra fora, deram-se as mãos, acalmaram seus corações acelerados, descansaram ao lado do canteiro de flores do Pulo Molhado e sentiram que seus pés, cansados da ladeira da rua das laranjeiras, eram ora perto, ora longe, trocando inocentes carícias, os pés em que rio havia passado.
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Uma espécie de convite
Andando sobre
Os próprios pés
Ele foi subindo a rua
As pernas e os olhos
Brilhavam ao som
Incerto da melodia
Do seu atrás.
E o céu girava
No sacolejo brilho
Do samba da noite
E ele subia indo
Para lá e para além
- Eu tô indo de encontro
Com o sol, vem comigo!
Os próprios pés
Ele foi subindo a rua
As pernas e os olhos
Brilhavam ao som
Incerto da melodia
Do seu atrás.
E o céu girava
No sacolejo brilho
Do samba da noite
E ele subia indo
Para lá e para além
- Eu tô indo de encontro
Com o sol, vem comigo!
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
O Caminho de Casa
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Quadros Cegos
Se houvessem cores
talvez elas fossem azuis
como sempre o sinto azul no seu passar.
Eu apenas sinto e sei o que sinto
porque é neste sentir
que eu ouço cada passo
e cada sorriso teu.
Você e eu somos como duas estrelas
que vão além da visão dos Homens
quebramos o tempo
e o deixamos ser quão longo quiser
deitados sobre o céu e olhando as estrelas do mar.
Se houvessem cores
talvez elas fossem amarelas
assim como sempre sinto o seu assovio pela janela.
Eu na tua cantoria
gosto de me sentar em teus sons
e lembrar do vento dos teus braços
da imensidão de me aninhar sob teus carinhos
e a liberdade do teu abraço
- um sol de domingo.
Se houvessem cores
talvez elas fossem tons de verde
e quando eu penso em dizer adeus
me lembro dos teus olhos
e mergulho fundo em seus aquários
vivendo meus sonhos e os teus suspiros tão longos.
E é no som, no tato, deitado sobre meus lábios
que você e eu nos perdemos no infinito da vida
ao tom de uma nota incolor.
Se houvessem cores... mas elas não existem
e assim sigo, te sentindo, te ouvindo,
e te amando no escuro dos meus olhos esbranquiçados.
sábado, 18 de setembro de 2010
Carta de Dolores Maria de Menezes e Paulo
Boa noite meu filho
Esta carta nasce hoje como um suspiro de não se ter mais certezas das coisas que permanecerão vivas.
Eu me chamo Dolores Maria de Menezes e Paulo, tenho 65 anos e sinto como se a minha vida estivesse se estendendo para um longo leito de não se saber mais existir. Hoje tive um encontro. Não sei exatamente dizer se fora um encontro de amor, mas a algo que arde em mim essa noite que não consigo dizer se me faz fogo de uma velha paixão ou se me faz fogo por fogo.
Recebi a visita de um homem que não esperava. Conversamos por três horas seguidas afim de chegarmos num entendimento entre as minhas vontades e as vontades dele. Mas apenas corre em mim a sensação do desejo, de ser poetiza.
Casei-me com 15 anos. Meu pai guiava locomotivas pelos estados de São Paulo e Minas Gerais e minha mãe era uma dona de casa que gostava de fazer suas próprias panelas de barro. Sentava conosco – Somos cinco lá em casa, numa ordem decrescente, Eu, Irma, Aurélio, Bonâncio e Olívia – e passávamos boas longas tardes massageando o barro, amando a terra e nos enfeitando com todas aquelas quinquilharias que criávamos com o barro gemido.
Em 1962, houve uma festa nos fundos da igrejinha para comemorar a formatura da nova turma de datilógrafas. Eu não fui. O homem com quem dividia os lençóis de lírios amarelos havia me trancado em casa e sua voz insistia em se debater por todas as paredes de madeiras e a casa gritava tão alto quanto a sua garganta que arranhava dizendo, não, mulher nenhuma que se preze usa seus dedos para outra coisa que não no fogo esquentar, na água esfregar, na agulha me vestir e na cama se sujar, e os ecos que ali batiam não sei!..
Olívia uma vez, fez o favor de pegar o balde onde mamãe guardava a lavagem dos porcos e virar sobre si mesma. Foram só risos aquela tarde. Irma não saiu do balanço da jabuticabeira, Aurélio e Bonâncio cantavam qualquer rima endiabrada que viesse mais tarde irritar mamãe enquanto eu corria ao auxílio dela que sujava suas mãos no barro. Olívia precisou de uns sete banhos com sabão feito de gordura de porco para que conseguíssemos distingui-la dos que gruíam ao lado dela, já que era tão roliça quanto qualquer suíno rosa daquele sítio. Olívia era negra.
E quanto mais eu chorava, mais papai me batia. Gritava como um cavalo e cuspia seu fumo a cada cinco palavras – desavergonhada, isso sim, já te esperam com cravo em paleta e você me choraminga desesperos de não se casar? Todos os meus livros foram queimados aquela noite. Debrucei-me sobre a janela do quarto e olhava atenta, escutando a luta entre o ribeirão que corria à direita e a fogueira que estralava à esquerda. O fogo era tão brilhante quantos os olhos de Helena, tão veloz quanto às pernas de Iracema, tão vermelho quanto a marca de meus olhos.
Carlos José de Menezes e Paulo Filho, sim, exatamente dessa forma. Era como se um sonho, materializado sobre meus braços, olhasse-me intimamente e silabasse num sorriso: Mãe.
Logo depois, no natal de 1949, os meus tios por parte de pai, todos sentados a mesa, trocavam rápidas e poucas palavras; não se trata de ser uma situação confortável, a questão é que em noite de natal sua mão não deveria estar suja de barro. Olívia choramingava em seu berço de palha enquanto Aurélio, Bonâncio e Irma dormiam sobre as novas mantas que haviam ganhado de minha avó. Eu olhava, acho que não entendia o significado de tudo aquilo.
Mas, é justamente por isso que Carlos havia me comprado aquela cesta. No verão de 1975, meu marido havia sido promovido na fábrica de tecidos em que trabalhava, ficava no bairro do bexiga e enquanto descíamos a serra ele gargalhava, enquanto aquela cambada de italiano insiste em produzir macarrão, eu fico rico. Salve pátria produtora de tecidos. Não sei se ele sabia muito bem o que dizia, mas o Guarujá surgia de trás de um ipê roxo e a estrada que só descia ao lado da ferrovia nacional se enfeitava de verde, roxo e amarelo.
As três horas que passavam, fazia do quarto um lugar quente, eu estou agora da forma como fui deixada. Sobre os meus velhos lírios amarelos, sinto a pele suada por debaixo da minha seda branca e alguma coisa sangra em mim. Não devia ter sido tão amada, me deixei levar por tantos afagos, mas era apenas o escuro, minha cama, aquele sorriso e a vontade de amar.
No outro dia, Carlos vestia um terno marrom e prendia um cravo amarelo na camisa velha. Havia um sorriso. Era o dever cristão sendo cumprido. Padre Mariano sabia melhor que qualquer velha daquela região, ler o bordado dos olhos de uma mulher triste. Era o único sorriso. Em nome do Pai, em nome de Filho... meu nome se desfez.
Lembro que os presentes não foram abertos. O natal havia terminado antes mesmo da meia noite. Um tio sussurrava por debaixo do busto goticulado de suor que o bom velhinho de tão bom virou ceia dos porcos da fazenda. A única canção de natal vinha do berço rejeitado, um choro seco como castanhas, duro como uma avelã. E minha mãe, deitada no quintal de terra olhava para o céu e para as estrelas e fazia panelas. Eu era filha de uma puta com a Lua.
Foi uma bronquite crônica. Sim é lindo o caixãozinho branco.
Os meus dedos formados, aquela noite serviram apenas como carne. Minhas anáguas rasgadas pareciam bandeiras de paz num campo de guerra onde só se ouvia um único estourar. Eu quase desejava, era um limiar pouco na tentativa de desejar, já que gosta de datilografar, façamos a prova final e meu pulso vermelho, marcado a cinco dedos ia dançando no letrar de uma máquina. De dentro do salão imperial Helena era posta no colo e levada nos braços escadaria acima, as cortinas brancas dos aposentos íntimos foram cerradas e a poesia ia sendo digitada sobre as pernas fortes e largas, e a poesia ia sendo borrada nas duras e peludas coxas e a carne dura que pulsavam altas veias e vermelhejava um lustre que me foi engolido. Uma comédia, não um romance, além de datilógrafa é cantora. Gostos!
As praias estavam desertas e Carlos dormia, tão lindo, tão homem, meu homem.
...
...
Eu somente fechei os olhos e pedi a Deus que esse sonho terminasse logo. Eu estava apaixonada por aquele rosto, por aquele beijo, por aquelas palavras, por aquele respeito. Não era Carlos. A praia deserta de mim mesma. Afogada.
Um homem me visitou hoje. O escuro, o sorriso, o tempo, a cama e o sangue não sangra de mim. Eu me chamo Dolores, tenho 65 anos, hoje escrevi um poema sem Carlos saber. Escrevem-se poemas com punhais? O Diabo me visitou hoje e agora, enfim, tenho minha historia contada e sangrada.
Adeus
“Glória a Deus senhor nas alturas e viva eu de amargura nas terras do meu senhor”
Esta carta nasce hoje como um suspiro de não se ter mais certezas das coisas que permanecerão vivas.
Eu me chamo Dolores Maria de Menezes e Paulo, tenho 65 anos e sinto como se a minha vida estivesse se estendendo para um longo leito de não se saber mais existir. Hoje tive um encontro. Não sei exatamente dizer se fora um encontro de amor, mas a algo que arde em mim essa noite que não consigo dizer se me faz fogo de uma velha paixão ou se me faz fogo por fogo.
Recebi a visita de um homem que não esperava. Conversamos por três horas seguidas afim de chegarmos num entendimento entre as minhas vontades e as vontades dele. Mas apenas corre em mim a sensação do desejo, de ser poetiza.
Casei-me com 15 anos. Meu pai guiava locomotivas pelos estados de São Paulo e Minas Gerais e minha mãe era uma dona de casa que gostava de fazer suas próprias panelas de barro. Sentava conosco – Somos cinco lá em casa, numa ordem decrescente, Eu, Irma, Aurélio, Bonâncio e Olívia – e passávamos boas longas tardes massageando o barro, amando a terra e nos enfeitando com todas aquelas quinquilharias que criávamos com o barro gemido.
Em 1962, houve uma festa nos fundos da igrejinha para comemorar a formatura da nova turma de datilógrafas. Eu não fui. O homem com quem dividia os lençóis de lírios amarelos havia me trancado em casa e sua voz insistia em se debater por todas as paredes de madeiras e a casa gritava tão alto quanto a sua garganta que arranhava dizendo, não, mulher nenhuma que se preze usa seus dedos para outra coisa que não no fogo esquentar, na água esfregar, na agulha me vestir e na cama se sujar, e os ecos que ali batiam não sei!..
Olívia uma vez, fez o favor de pegar o balde onde mamãe guardava a lavagem dos porcos e virar sobre si mesma. Foram só risos aquela tarde. Irma não saiu do balanço da jabuticabeira, Aurélio e Bonâncio cantavam qualquer rima endiabrada que viesse mais tarde irritar mamãe enquanto eu corria ao auxílio dela que sujava suas mãos no barro. Olívia precisou de uns sete banhos com sabão feito de gordura de porco para que conseguíssemos distingui-la dos que gruíam ao lado dela, já que era tão roliça quanto qualquer suíno rosa daquele sítio. Olívia era negra.
E quanto mais eu chorava, mais papai me batia. Gritava como um cavalo e cuspia seu fumo a cada cinco palavras – desavergonhada, isso sim, já te esperam com cravo em paleta e você me choraminga desesperos de não se casar? Todos os meus livros foram queimados aquela noite. Debrucei-me sobre a janela do quarto e olhava atenta, escutando a luta entre o ribeirão que corria à direita e a fogueira que estralava à esquerda. O fogo era tão brilhante quantos os olhos de Helena, tão veloz quanto às pernas de Iracema, tão vermelho quanto a marca de meus olhos.
Carlos José de Menezes e Paulo Filho, sim, exatamente dessa forma. Era como se um sonho, materializado sobre meus braços, olhasse-me intimamente e silabasse num sorriso: Mãe.
Logo depois, no natal de 1949, os meus tios por parte de pai, todos sentados a mesa, trocavam rápidas e poucas palavras; não se trata de ser uma situação confortável, a questão é que em noite de natal sua mão não deveria estar suja de barro. Olívia choramingava em seu berço de palha enquanto Aurélio, Bonâncio e Irma dormiam sobre as novas mantas que haviam ganhado de minha avó. Eu olhava, acho que não entendia o significado de tudo aquilo.
Mas, é justamente por isso que Carlos havia me comprado aquela cesta. No verão de 1975, meu marido havia sido promovido na fábrica de tecidos em que trabalhava, ficava no bairro do bexiga e enquanto descíamos a serra ele gargalhava, enquanto aquela cambada de italiano insiste em produzir macarrão, eu fico rico. Salve pátria produtora de tecidos. Não sei se ele sabia muito bem o que dizia, mas o Guarujá surgia de trás de um ipê roxo e a estrada que só descia ao lado da ferrovia nacional se enfeitava de verde, roxo e amarelo.
As três horas que passavam, fazia do quarto um lugar quente, eu estou agora da forma como fui deixada. Sobre os meus velhos lírios amarelos, sinto a pele suada por debaixo da minha seda branca e alguma coisa sangra em mim. Não devia ter sido tão amada, me deixei levar por tantos afagos, mas era apenas o escuro, minha cama, aquele sorriso e a vontade de amar.
No outro dia, Carlos vestia um terno marrom e prendia um cravo amarelo na camisa velha. Havia um sorriso. Era o dever cristão sendo cumprido. Padre Mariano sabia melhor que qualquer velha daquela região, ler o bordado dos olhos de uma mulher triste. Era o único sorriso. Em nome do Pai, em nome de Filho... meu nome se desfez.
Lembro que os presentes não foram abertos. O natal havia terminado antes mesmo da meia noite. Um tio sussurrava por debaixo do busto goticulado de suor que o bom velhinho de tão bom virou ceia dos porcos da fazenda. A única canção de natal vinha do berço rejeitado, um choro seco como castanhas, duro como uma avelã. E minha mãe, deitada no quintal de terra olhava para o céu e para as estrelas e fazia panelas. Eu era filha de uma puta com a Lua.
Foi uma bronquite crônica. Sim é lindo o caixãozinho branco.
Os meus dedos formados, aquela noite serviram apenas como carne. Minhas anáguas rasgadas pareciam bandeiras de paz num campo de guerra onde só se ouvia um único estourar. Eu quase desejava, era um limiar pouco na tentativa de desejar, já que gosta de datilografar, façamos a prova final e meu pulso vermelho, marcado a cinco dedos ia dançando no letrar de uma máquina. De dentro do salão imperial Helena era posta no colo e levada nos braços escadaria acima, as cortinas brancas dos aposentos íntimos foram cerradas e a poesia ia sendo digitada sobre as pernas fortes e largas, e a poesia ia sendo borrada nas duras e peludas coxas e a carne dura que pulsavam altas veias e vermelhejava um lustre que me foi engolido. Uma comédia, não um romance, além de datilógrafa é cantora. Gostos!
As praias estavam desertas e Carlos dormia, tão lindo, tão homem, meu homem.
...
...
Eu somente fechei os olhos e pedi a Deus que esse sonho terminasse logo. Eu estava apaixonada por aquele rosto, por aquele beijo, por aquelas palavras, por aquele respeito. Não era Carlos. A praia deserta de mim mesma. Afogada.
Um homem me visitou hoje. O escuro, o sorriso, o tempo, a cama e o sangue não sangra de mim. Eu me chamo Dolores, tenho 65 anos, hoje escrevi um poema sem Carlos saber. Escrevem-se poemas com punhais? O Diabo me visitou hoje e agora, enfim, tenho minha historia contada e sangrada.
Adeus
“Glória a Deus senhor nas alturas e viva eu de amargura nas terras do meu senhor”
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Wind south
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Quarto de Menina
A lata na cabeça
passa sujando os pés
de pó.
Os varais secos
chupam ar quente
enquanto
aqui e ali um portão
bate...
- Toda assim pequena
que numa janela
se alumia, enquanto
numa outra chovia.
A lata na cabeça
volta sujando a barra
de barro.
Os varais pingando
chupando a lima molhada
enquanto
aqui e ali um portão
abre...
- Da minha janela
eu faço os dias.
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Cadeira nem beira
Quando tudo se apaga
é sinal de que o tempo
se esgota na sede de correr...
Cada passo desse chão
cada ponta para o céu
cada vivo que se morre noite
cada boca que sim diz pro véu
Cadê? Eu hei de perguntar...
Cadê? Onde estão aquelas folhas
[e aquela brisa de verão]
Cada soco violento
cada rio violento
cada riso violento
cada hora violino
Cadê? Eu não temo em choramingar...
Cadê o homem que me botou assim?
[e aquele escárnio a pulsar]
Cada vez que estou
cada membro que está
cada colo que estarei
cada beijo a duvidar
Cadê? Não paro de gritar...
Cadê você que me tortura e acha graça?
[glória aos homens por ele amado]
Cada vez que eu repito
cada verso traz um desgosto de
cada vez mais me segurar aqui
cata-versos a me entupir
Cadê o dono desse lugar?
Cadeiras cavadas pra me esconder
[não há cama, nem ferrão a me esperar]
Cada morte que se passa aqui é
cada gente que se salva por
cada palavra guardada, mesmo que torturada
cada qual besuntada na sua delícia de não dizer
Cadê?
Foda-se!
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
A história da contente Maria
Enquanto as mulheres
bordavam os cachos de seu Francisco
e as crianças pintavam areias
diante o céu que se erguia e se coloria
Dos canaviais
ali de trás daquelas casas
todas tão pequenas qual pedrinhas de lajeados
ouviu-se um choramingado que abria o amanhecer.
Era ela tão morena
Toda assim sem nem caber de pequena
Com um terno tracejo sorria
E por ser tão emariada
Que sua doce Ana, caiana, mãe
Resolveu lhe chamar de Maria.
Quanta luz se fez no sertão
Toda gente apertava os olhos
Tão grande era o clarão
De quando passava Maria
E toda a terra a amava
Em seus olhos de beterraba
Seus cachos trançados de rio de prata
E na sua singela roupa de lona de circo
qualquer princesa que se cruzava
Maria sorria, pois sabia das asas que tinha.
Mas Maria, que tanto sorria
Era só o único alumio do brejo da gota.
O céu puramente azul
sem qualquer tipo de imaginação de algodão
rachava o solo sempre que ela se ria
secava as floridas cestas da vila
sempre que ela corria
matava – de sede – enquanto Maria vivia.
Maria que era assim, um cirquinho de conchinhas
passou... passada fez de sua lona
um imenso vestido de estrelas.
Com sua renda no cabelo
mantinha seus olhos pequenos
e o leite que escorre de sua boca, raiava o dia como sempre
Tanto sois dessa menina
tantos sonhos dessa meninona
tantos sorrisos dessa mulher
trincava cada menino, cada mulher, cada senhor
e a vida, imitando algo que não se via
escorria.
Uma história tão assim
cheia de uma luz que ardia de olhar
secou o sertão, o dissolveu em grão
Ela, foi aclamada enquanto descansava
no avarandado da alegria.
Com as bocas secas, era rogada:
- Então, não sorria Maria.
Boas Novas
Hoje começa uma nova fase no tão novo "pra não chamar Maria".
Surgiu uma ideia maluca na minha cabeça e eu pedi para um amigo ser meu comparsa e ele aceitou. A partir de hoje, o blog publicará junto de suas poesias a leitura fotográfica destes poemas por Leonardo Santangelo.
A brincadeira é mais ou menos assim. O Poeta lhe envia um poema e, assim, esse fotografa o seu sentimento diante o escrito. Assim como haverá poesias que serão a expressão de algumas fotografias.
"Acho legal que cria uma interação maior entre os dois papéis (poema e foto) porque poe a pessoa a questionar, tanto o que leu quanto o viu." (Leonardo)
Hoje o pra não chamar Maria invade a rede com a máxima manifestação da arte onde aquilo que foi sentido e escrito por um passa a ser sentido e fotografado por outro criando uma terceira expressão artística: a sua leitura. Bem vindo ao "pra não chamar Maria", fiquem a vontade e saboreiem o máximo.
Surgiu uma ideia maluca na minha cabeça e eu pedi para um amigo ser meu comparsa e ele aceitou. A partir de hoje, o blog publicará junto de suas poesias a leitura fotográfica destes poemas por Leonardo Santangelo.
A brincadeira é mais ou menos assim. O Poeta lhe envia um poema e, assim, esse fotografa o seu sentimento diante o escrito. Assim como haverá poesias que serão a expressão de algumas fotografias.
"Acho legal que cria uma interação maior entre os dois papéis (poema e foto) porque poe a pessoa a questionar, tanto o que leu quanto o viu." (Leonardo)
Hoje o pra não chamar Maria invade a rede com a máxima manifestação da arte onde aquilo que foi sentido e escrito por um passa a ser sentido e fotografado por outro criando uma terceira expressão artística: a sua leitura. Bem vindo ao "pra não chamar Maria", fiquem a vontade e saboreiem o máximo.
Ode matinal ao que não se vai
E hoje de manhã eu quase morri.
Aquele monstro seco que me habita
Remoeu, gemeu, arranhou
Enfezado a vida que não quer ter
A cria dura de uma fase não resolvida
O filho bastardo do ontem
Quebrou minha coluna ao meio
sangrou minhas entranhas
e em três pontos se disse feito
mas não
persiste a dor
num caminho de fim de giz
num resto amargo de boldo
no filho morte
no sonho de expelir
-pelo amor de deus
o mal que me preenche.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Aquele Amante
domingo, 8 de agosto de 2010
OFF
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
Dia de Pão
Hoje, voltando da casa da minha avó, passei em frente à antiga padaria do bairro e minha mãe que estava cantando uma música qualquer do rádio, parou o carro no pare obrigatório como obrigatória foi a parada da sua cantoria, como tão quanto de repente o carro andou “A padaria vai fechar, que raiva” de repente foi o choque que se sucedeu. Eu meio que sem entender, coloquei o saco de balinhas coloridas - aquelas de gostos de frutas, bem azedinhas e que segundo meu pai custam os olhos da cara e que pensando bem, às vezes eu sinto que preferiria ser cega, mas ter a boca para sentir os seus sabores coloridos – perguntei por que a minha mãe. De terceira marcha ela embreagenhou um rápido e “não sei” e acabamos por chegar em casa.
Durante o banho eu lembrei dos brigadeiros que tinham lá. Durante a janta eu lembrei dos croassant de geléia de amora que meu pai comprava todo café da manhã “Esses pãozinhos custam o olho da cara, mas são bons demais né?”. Durante a novela eu lembrei dos pães franceses, que graças a Deus não vinham com bigodes fininhos acompanhados de boinas avermelhadas. Durante a noite: Sonhos.
Me lembro vagamente da substituição de coisas a serem vendidas. Uma grande broa de milho, vestida com um avental branco, sovava uma massa diferente enquanto uma Baguete daquelas cumpridas e secas fumava – talvez por isso tão magricelas – na porta da padaria esperando algum cliente para cumprir sua função de caixa. No balcão da frente eu via todos os meninos da escola afundados em caminhas de bolacha cobertas por creme de limão e eu juro pra você que eu achei foi bom; meninos são chatos, tomara que o limão arda seus olhos. Minhas amigas preferidas, espetadas em pauzinhos de madeira, cobertas de chocolate se mostravam sobremesas infantis. No balcão dos fundos estavam Seu Jesus – dono da padaria, sovado, amassado e assado como um pão círio, Dona Maristela – esposa do Seu Jesus, assada e enfeitada como um bolo de casamento; meu pai apertado numa forminha de papel era não o olho da cara, mas um olho-de-sogra e minha mãe uma maria-mole.
Só lembro que eu podia de tudo ali comer, nem lembro mais onde eu deixei meu saquinho de balas coloridas e a boneca que eu segurava, eu só sei que não sabia o que fazer. A minha grande dúvida era se eu me mantinha de boca fechada ou se eu os comia até o último pedacinho. A minha fome era de algo que eu não sei o que é, a minha sede era para um solução. E nesse dia em que tudo era de graça na padaria do bairro, ninguém ia até lá comer. As pessoas sentem fome de não sei o que, mas se sentem sempre fome, porque não iam lá comer nesse dia de promoção? Eu gritava e chamava pelos funcionários e ninguém me ouvia, apenas os doces e bolos dos balcões franziam a testa para minha barulheira.
Aos poucos, quando eu vi de longe minha boneca comendo minhas balinhas, eu achei que as coisas, as pessoas e o mundo estavam complicados demais. Eu tinha a sensação de que ninguém me ouvia – e olha que eu sou uma menina que fala alto, a minha professora sempre reclama disso nas reuniões de pais e mestres (ou pães e padeiros) – mas tinha medo de na vontade doida de comer todas as minhas balinhas, que eram o olho da cara, eu ter ficado cega e não ver mais as pessoas que estavam perto de mim, de não ouvi-las, de não senti-las, tamanho fosse a minha gulodice. Na dúvida, diante a crise coisica, das crises pessoais e das crises mundiais, eu preferi sentar debaixo da árvore de frutinhas amarelas do Sr. Victor e fiquei quieta! Como sempre disse minha avó “em boca fechada não entra mosquito” e assim também eu não corria o risco de comer nenhum daqueles doces estranhos da padaria do Seu Broa. Porque pra mim, não comer é ficar em silêncio e por mais que a tia da escola diga que eu preciso me alimentar muito bem, pois eu estou em fase de desenvolvimento, eu tenho preferido ficar em silêncio a me lambuzar com palavras mal ditas.
Se isso chama covardia, talvez seja só problema meu... Se isso chama fuga, talvez seja só problema meu... e não me olhem com cara de “nossa que menina birrenta e mal criada” eu to quietinha, eu não to comendo nada. E a próxima vez que disserem, “mas gente, como essa menina ta magra”, saibam que eu to me abstendo dos problemas e das crises mundiais, eu sou pequena ainda e tô aprendendo. “Birreeeenta!” Birrento é você que acha que vê aquilo que pensa que sabe o que vê e bate o pé achando que tem a verdade na ponta do dedo e aponta pra mim dizendo “Birreeeenta!”. Eu só tenho preferido o silêncio, porque meu medo é de abocanhar e machucar alguém com as minhas palavras – brancas, enfiodentadas e escovadas todos os dias. E eu sei que eu deixando de comer ou falando e fazendo muito barulho vou acabar machucando alguém. Na dúvida, que haja o silêncio. Fica mais fácil de dormir e mais tranquilo de morrer caso os ferimentos sejam irreversíveis!
No outro dia eu acordei. A padaria tinha fechado as portas mesmo e agora o pão vem fechado num saquinho, em forma.
“Nossa, mas essa marca de pão é o olho da cara, não é mesmo meu bem?!”
terça-feira, 3 de agosto de 2010
A civil
Há uma esquina...
Enquanto eu espero
que a chuva pare de cair
há sempre uma esquina
que não pára e insiste em me olhar.
São pedras pequenas,
águas que correm
sujeiras,
folhas,
luzes no céu
e uma esquina
que não pára e insiste em me olhar.
Há uma esquina...
está sempre molhada
após as chuvas quentes
e seguindo seu bailar ondulado
o óbvio de se ser molhado
escurece sempre
quando não sinto
e assim persisto em não enxergar.
Há uma esquina,
que se molha quando chove,
que escurece quando não há luz
que endurece quando me seca a boca.
Por ser assim, tão feito de lascas
tão sujo, tão chão
a esquina consegue
sempre seguir seu caminho
...um vizinho
...um quarteirão
...um bairro
...um universo
Dos mijos de cachorros,
dos vômitos dos embriagados,
do gozo dos despreocupados,
do passar despercebido do meio dia
ao pisar medroso da meia noite
mesmo que sempre tão óbvia,
molhada, dura, suja
numa esquina.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
À brio vital
...os pés frios
...uma tarde de abril
uma vida que corre
dentro de mim
procurando um fio
aquele que azul
se fez em branco
e os olhos em cores
cobrem com folhas tardias
as flores brancas de um dia branco.
- somente sete – sente?
As estradas que percorremos
são trigos ao vento
bocas fechadas
e olhos discretos
das lascas que pisamos
em busca do alto riacho
que não para nunca
- de correr
As pedras paradas
acompanham paradas
a história de homens
e suas intermináveis
paradas aquelas pedras
As vilas passam
as velhas joias passam
as mulheres rubras passam
as crianças
as rosas
as azuis
as brancas
o limite
-passa
Sou só uma árvore
e a vida nasce em mim
na seiva, seja!
domingo, 1 de agosto de 2010
Num acorde d'água
-Havia flores pregadas na parede
Do silêncio das venezianas
Ao assoalho latejante de um cômodo qualquer
Corriam pelas portas as crianças
Que não passavam de vento
Que não ventavam apenas aquilo que se passa
Brincavam de ser homem
Foi como tudo começou
Arrebentou as ondas mais altas
Murchou os mais vastos campos de girassóis
e do pequeno menino se fez o nada
As paredes todas decoradas
Pisadas no suor da saudade
Trouxe de volta
A fina luz entre as folhas
E num único desejar da brisa
Eu vi que os galhos se balançaram
A grama se fez sedutora
Subiu as escadas de pedras tão lisas
Invadiu as portas da frente
Girou o corpo no instante
Silenciou sobre o tapete
Eu era uma árvore de flor e fim
quinta-feira, 29 de julho de 2010
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Dia de Médico
O que é a covardia? Eu li num certo lugar que essa qualidade (?) pode ser definida como um vício que, convencionalmente, é visto como a corrupção da prudência, oposto a toda coragem ou bravura. Vício é uma palavra que quase sempre, pelo menos desde que eu me entendo por gente, é usada em conjunto de qualquer coisa que tenha como conseqüência uma doença, assim, dessa forma eu acabo por entender que segundo esse tal lugar aí, covardia é uma doença! (.......) é, realmente eu tenho me sentido doente! Eu não estou doente, mas é como se eu estivesse, a propósito eu passei os longos e vastos dias de julho assim, meio de cama. Não que eu tenha perdido muito tempo deitado em uma, pelo contrário, até que eu pareço um garoto saudável; sorriso bonito, olhos iluminados (?) e uma boa coloração de pele, o problema parece ser por dentro mesmo, o que acaba por piorar o estado clinico de saúde. Num desses dias pra trás eu fui numa médica Drª Ana Maria Marcho, foi meio tenso porque de todas as perguntas que ela me fazia todas eu respondia que sim. “Você se sente amargurado?”, “Você se sente triste?”, “Incapaz?”, “Inútil?”, “Você por acaso tem sentido um peso como se não fosse conseguir levantar da cama?”, “Você tem dormido bem?”, “Você tem dormido?”, “Você tem sentido desanimo?”, “Você tem se sentido descrente?” e depois de estar tão cansado de tantas afirmações ele me perguntou “Você tem sentido?” e eu respondi
não!
Ali naquele momento eu me questionei: porque até então eu estava dizendo que eu estava sentindo um monte de coisa e aí quando ela, a Drª, me perguntou se eu sentia, eu disse, abruptamente, como se fosse um bêbado que regurgita tudo aquilo que ele afogou com um porre de pinga: Não! E ela ficou me olhando com uma cara de assombro, com cara de cientista quando acabou de descobrir uma nova espécie ou uma nova doença. Eu fiquei sem graça, coçava a barba mal feita, esfregava as mãos na calça, como se quisesse limpa-las de alguma coisa muito fedida e não conseguia mais olhar pra ela. Até que ela “Criatura, filho, amigo, você tem sentido?” e completou “se for preciso eu te oriento, mostro uma saída, o sentido que você tem que tomar, mas eu não posso sair daqui agora e você vai precisar ir sozinho”. “Entre por essa porta agora e diga que me adora você tem meia hora pra mudar a minha vida” foi o sonzinho baixo da caixinha de som da recepção que me despertou, eu olhei pra ela, peguei o remédio que ela tinha descansado sobre a mesa e fui embora, saí correndo!
No ponto de ônibus eu olhava pra minha medicação. Uma caixa normal de remédios, como de qualquer laboratório medley ou eurofarma: Quadrada, com um ar antipático e de poderosa, como se a própria antipatia diante a sua dor já fosse curá-la. “AQUIDENTRO” era o nome do remédio. Caixa branca e amarela, retangular, com uma faixa vermelha escrita em letras farmacêuticas: “Quando vamos rir?” e do lado “indicado para tristezas, angustias, sensação de covardia, incapacidade, sensação de inutilidade” etc. A caixa estava vazia! ... Aquidentro estava vazio.
Sabe que eu procurei uma bula pra tentar entender algo sobre o remédio, pra tentar ver os efeitos colaterais, pra ver o que aconteceria se eu tomasse altas doses daquele remédio. Mas, a caixa estava vazia! Eu tenho me sentido doente, e não são qualquer coisinha as dores disso não. São homéricas, são tenebrosas, provoca febres congelantes e calafrios escaldantes, me dá um tique de tremelique no corpo que eu fico assim ó, horas tremendo todo ... tirando os exageros que me são peculiares talvez as febres e os calafrios não sejam tão intensos assim, se é que chegam existir, e a tremedeira não seja muito além daquilo que eu já tremo naturalmente, HÁ, pois é, eu herdei a tremedeira da minha vó, e ela nem morreu ainda hein!
Mas talvez a covardia seja um vício mesmo, e que afeta a capacidade de pensar por que eu não tenho ultimamente conseguido analisar, refletir, filosofar e desenrolar sobre o assunto. Tenho sentido e ponto. Talvez seja fuga – ah que bom seria se fosse uma fuga como aquelas de TV, cheia de ação, explosões e claro aquelas músicas estranhas que eu adoro ouvir durante o dia em casa, no último volume. Aquele tal lugar, dizia ainda que a covardia é um comportamento que reflete falta de coragem; medo, timidez, poltronice; fraqueza de ânimo; pusilanimidade ou ainda ânimo traiçoeiro. Esse dicionário mais do que informativo é poético, convenhamos; quando eu pensei que alguma pessoa pudesse ser poltroníseca, ou então, não menos diferente da estranheza, tivesse ânimo traiçoeiro – bem que minha vó dizia pra não confiar nem na própria sombra. Pusilanimidade...deve ser algum tipo de pus que sai do machucado da covardia.
Talvez eu esteja doente e meu remédio no momento fosse um pingo de coragem, e não acredito que seja coragem pra conseguir enfrentar os fatos, de tomar atitudes e tudo o mais, porque isso eu até que tenho uma boa habilidade. Talvez eu esteja precisando de coragem de sentir. Porque eu sei do tamanho, da forma e da intensidade da dor – e não só de um hematoma, tenho sentido dores demasiadas por muitas coisas. Hoje eu não quero sentir, não quero não senhor nenhuma pontinha de dor que não seja a garganta ardida de uma pinga. Eu quero dormir em paz, eu quero estar em paz, eu quero paz... Hey moço, onde compra?
*foto do espetáculo AQUIDENTRO da Cia. de Teatro OPOVOEMPÉ
La elegancia de Dolores
Dolores não me olhes assim
retome teus sapatos amarelos
enxugue esses olhos carmim
e por favor Dolores, não me olhes assim.
Toma o brilhante que te dei
erga a cabeça e veja
que há muito além de mim
mas por favor Dolores, não me olhes assim.
Pelas noites passadas,
pelo rum que te queima a boca,
esfrega esses lábios que choram
e por fim, Dolores, não me olhes assim.
Segue tua rua de pedras,
prenda teus cachos com teu lenço branco
e vai, vai Dolores, vai que a noite acabou
Vai Dolores, mas não me esqueça assim...
terça-feira, 27 de julho de 2010
Janela de Nós
De onde vem
aquele sossego
assim enfeitado
de flores e barcos
sobre o espelho dos olhos
maré banhada
por um sol nascente
por uma luz crescente – no peito!
As casas
sempre tão pequenas
recheadas das maiores
morenas mulheres
e de homens de pão, em cores.
Na praça
uma fonte passageira,
uma vida que brilhará
cada vez que uma criança
gargalhar
Era assim, toda rodeada de primaveras
a Vila Ventura
ali na curva do vento
que traz a saudade
e que descansa num universo
de lençóis - brancos.
É ali no último acorde do violão
que eu me recosto
nos braços da paz,
descalço meus pés da solidão
fecho os olhos
e de mãos dadas
te amo.
domingo, 25 de julho de 2010
O fim da meada
Era tinta e papel
pedaços de histórias prontas
um romance à granel
Era a poesia feita do que não se via
e na dúvida da palavra certa
pra dizer que não vale a pena
pra dizer que não merece
a poesia se concreta
mesmo que em momento de prece
daquilo que se padece
Fica apenas no instante do medo
se de ato se fez o fato
ou só mais um sonho
num devaneio em que me desfaço
Ficou o cheiro
e assim eu me resguardo
Vai menino, vai que pra mim
Guardo os meus passos.
sábado, 24 de julho de 2010
Na tua reza
De baixo de uma incomum chuva
Velhos arbustos plantados
Ao lado de novas flores
Silenciavam as orações
E no silêncio de uma tarde
De sexta-feira
O único som era dela
- Você saiu de mim, eu te dei o ar
saiam todos, saiam todos
Trovejava o céu escuro
- serei eu a única a te deixar ir
volte pra dentro meu pequeno, volte
E com as unhas sujas de terra
Cravadas as raízes
Uma mulher se reconstruiu
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Eu tentei evitar
Liguei a tevê
E deitei no sofá
Desde que haja tempo pra sonhar
E assuntos pra desenvolver
Não é muito fácil desligar
Me dá pena do meu chinês
Por ele eu passava o dia inteiro
A meditar
Bebendo chá verde ele me diz
"Fica feliz que vai funcionar"
Mas eu tô feliz,
Eu juro pelo meu irmão
O saldo final de tudo
Foi mais positivo que mil divãs
Por isso que não adianta
Querer julgar
É cada um por si
Na sua
Própria bolha de ar
Mas o que eu penso mesmo
É encontrar alguém que me dê carinho e beijo
Me trate como um nenêm,
Me trate muito bem
Ah, eu só quero amor
Seja como for o amor
Seja bom, seja bom,
Seja bom, seja amor
Me faz mais feliz
Me dá asas pra fluir
E cantar o amor
(Chá Verde - Tiê)
Liguei a tevê
E deitei no sofá
Desde que haja tempo pra sonhar
E assuntos pra desenvolver
Não é muito fácil desligar
Me dá pena do meu chinês
Por ele eu passava o dia inteiro
A meditar
Bebendo chá verde ele me diz
"Fica feliz que vai funcionar"
Mas eu tô feliz,
Eu juro pelo meu irmão
O saldo final de tudo
Foi mais positivo que mil divãs
Por isso que não adianta
Querer julgar
É cada um por si
Na sua
Própria bolha de ar
Mas o que eu penso mesmo
É encontrar alguém que me dê carinho e beijo
Me trate como um nenêm,
Me trate muito bem
Ah, eu só quero amor
Seja como for o amor
Seja bom, seja bom,
Seja bom, seja amor
Me faz mais feliz
Me dá asas pra fluir
E cantar o amor
(Chá Verde - Tiê)
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