Após matar sua sede, a mosca, que
estava sobre a pequena poça de água que restara na pia limpa e organizada da
cozinha, alçou voo e zanzou pela porta e atravessou a sala, escapando por pouco
do tapa desatento dado por Sônia.
Curiosa! Era o nome que podia se
dar para aquela tarde quente de terça-feira. Sônia, uma mulher de 41 anos, mãe
de duas filhas, esposa de seu marido. Nesta terceira tarde da semana, sozinha
em casa, Sônia zanzava pela internet quando se deparou com um site que lhe chamou
a atenção. Estampava a capa do site um homem com seus 26 anos que mirava para
si mesmo através de um espelho a lente de uma máquina fotográfica e dizia:
arte erótica e descompromissada. Eram cenas eróticas, não pornográficas, de
mulheres que haviam se deitado com aquele rapaz. Poses sensuais; seios focados;
bocas umedecidas; coxas suadas; pelos arrepiados. Algumas vezes ele se
fotografava junto dessas mulheres e raras vezes até dividia o foco com outro
homem. “Que curioso...”.
Era incrível, na cabeça de Sônia,
pensar que mulheres se deitavam com um estranho e permitiam serem fotografadas.
“Mas nem ao menos se depilou essa...
Hunnn... Gorda! ... e essa pinta, gente? ... Nossa! Que grande”.
No fim da página, quase que como
um desafio despretensioso, o dono do site dizia algo como “Gostou? Agora quero gostar de você” e deixava um endereço de e-mail
para aquelas que quisessem ser fotografadas por sua lente. Sônia, que estava
com o notebook sobre suas pernas cruzadas no sofá, espreguiçou o corpo para
trás e, com a mão por entre os curtos fios de cabelos vermelhos, olhou para
janela e pensou. O sorriso rapidamente foi substituído por um ar sério e
culposo, que não durou muito tempo e voltou a se derreter entre dentes e
pensamentos enquanto mordia a unha vermelha perfeitamente pintada.“Nunca ninguém vai saber e, pra ser bem
sincera, acho que este e-mail nem existe mais”.
O Vinil do Chico que tocava
terminou junto do “enter” corajoso e desafiador de Sônia que enviou um e-mail
desacreditado para o dono do site.
“Sônia. 41 anos. 1,76 de altura e 69kg. Cabelos curtos e vermelhos. Te
encontro em frente à padaria da Rua Almirante Turvo. Hoje, às 15h.”
Sônia duvidava da existência
daquele endereço de e-mail e sabia que o horário marcado, 40 minutos depois do
seu “enter” corajoso, seria minimamente o empecilho existente para que nada
daquilo pudesse acontecer e assim finalizar seu dia suado de imaginação. Teria
sido assim, não fosse a notificação de e-mail que subiu ao lado direito da tela
dizendo: “Combinado, te aguardo lá Sônia”.
Gargalhou. Sônia, apenas
Gargalhou. Acostumada a obedecer, levantou-se do sofá, lavou o corpo, ria com o
rosto molhado e ria mais enquanto secava o cabelo. Saiu de casa e trancou a
porta rindo. Parou em frente à padaria e só riu. Ainda não sabia como e porque
tinha chegado até ali. Mordeu novamente a unha vermelha e parou de rir ao ver
ao longe um menino... Seus cabelos cheios, seu queixo levemente barbado, a
câmera pendurada no ombro, a pele branca, a camisa marrom de bolinha branca, o
jeans preto desgastado e o sorriso “Sônia?”
Andaram por umas quatro quadras,
ele muito tranquilo, falante, contava rapidamente do quanto tinha gostado de
receber o e-mail dela e perguntava coisas que mulheres gostam de responder,
como se soubesse lidar com a tensão sufocante que fazia Sônia responder tudo
muito rápido e seco. Ao entrar pela porta que se adiantava aos três lances de
escada, comentaram da coincidência de morarem tão próximos e isso fez com as
pernas de Sônia automaticamente retornassem para a calçada, desejando voltar para
o sofá quente e curioso daquela terça.
“Vem”.
Sônia teve a sensação de que quem
falava era a mão firme, mas não forte, que segurava seu braço e assim retomou
às escadas.
E foram poucas perguntas e muitas
poses e posições. Lábios úmidos, coxas suadas, pelos arrepiados, lentes
embaçadas, mãos, cabelo, pernas desfocadas, hastes, flashes, closes... Com a
luz vermelha ligada, ele saiu nu do quarto de revelação e disse: “depois do
vermelho, a tua vermelhidão é minha arte” e entregou para Sônia uma fotografia em
que estava ela, de costas, mostrando as três pintas de cor marrom que tinha na
nuca e que formavam, junto do repicado vermelho de seus cabelos, a arte dele.
Sônia não sorria. Caminhou em
silêncio pelas quatro quadras. Depois de abrir a porta e zanzar pela sala, deixou
a bolsa no sofá; ligou novamente o disco do Chico e debruçou na sacada. Olhou
para a noite quente que começava a surgir, fitou o céu avermelhado e pensou. Dessa
vez sem sorrir, descobriu que não era culpa o prazer que sentia ainda pelo seu
corpo, agora registrado e publicado. Descobriu que não tinha traído seu marido,
que não tinha traído sua família... Percebeu que para além de uma traição, havia
encontrado sua cor. Agora, recostada na sacada, ouvindo a porta da sala abrir,
anunciando a chegada da família, descobriu, ao se deixar fotografar, tudo aquilo que existia no mundo e que ela não podia ter.
“Te perdoo por te trair”.
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